Uma imagem pode crescer?

Lembras-te da menina do teatro, da ilustração que não me fez sentir nada? Quero transformar essa menina, numa ilustração própria. Dá-me gozo imaginar o universo à sua volta. 

O que estaria ela a pensar?

Porque parece tão aborrecida?

Será que posso substituir os figos por outro objeto , e trocar o simbolismo da cena (assim de repente, lembrei-me que podiam ser pessoas pequeninas, já que ela tem um ar tão snob…

Será que a posso representar a preto e branco, e o resto com cores muito fortes, como analogia a estares num lugar, mas sentires-te deslocado?

As possibilidades são imensas. 

Mas lembrei-me que, conforme o universo físico e simbólico à sua volta vai crescendo, também assim pode a minha técnica de pintura ir sendo aplicada ao longo do processo, contrariando a ideia estabelecida de pintar do plano de fundo para o primeiro plano, ou de fora para dentro.

Adoro uma boa dose de rebeldia contra os cânones estabelecidos; ou, como aprendi este ano, sabotagem afirmativa! Podemos falar sobre isso noutra altura.

Tenho pensado muito sobre expansão. Expansão no sentido de, ocupar espaço, crescer. Sem pedir licença. Essa até pode tornar se uma “signature technique” minha, que ao invés de desenhar tudo na ordem em que “é suposto”, vou fazendo o desenho crescer, a partir do seu foco principal. 

Com isso em mente, fiz o primeiro esboço no caderno. Tudo começa pequeno. Uma figura sentada. Uma menina num teatro, com um gesto registado enquanto está a acontecer, e que me faz perguntar-me se está aborrecida, distante, ou apenas noutro lugar.


O que me desperta a curiosidade, raramente é a personagem isolada. É nela que tudo começa, mas assim que a desenho, começo a pensar no que a pode rodear: o que ainda não está ali. O espaço que a imagem pede quando começa a existir. Às vezes penso que desenhar é isso: perceber quando uma imagem quer continuar a crescer.

A partir desse primeiro desenho, fiz outros no *Procreate*. Conforme vou avançando, vou exagerando e simplificando formas e traços. Vou imaginando possibilidades, substituindo objetos, trocando símbolos. Mudando o peso da cena. Até me passou pela cabeça inverter a lógica da cor - a figura a preto e branco, o resto saturado - como forma de falar de um estado estranho de estar num lugar, e sentir-se deslocado.

Há sempre muitas dúvidas ao longo do processo, e pergunto-me se, ao fazer os desenhos passar por este processo, a coisa se torna muito mecânica? Tenho medo de perder a espontaneidade. Mas este processo é o o que mais me diz, começar no sketchbook, expandir digitalmente, e depois passar para uma folha e pintar tradicionalmente. Tenho receio de me estar a “esconder” num processo em que repito o esboço e o estudo da imagem tantas vezes.  Não sei porque tenho martelada na minha cabeça a ideia de que um artista deve espontaneamente ”atirar” linhas para uma folha, e quer saia direito ou torto, essa é a sua expressão. 

Durante muito tempo aprendi — como quase toda a gente — que uma imagem se faz de fora para dentro. Primeiro o fundo, depois os planos intermédios, por fim a figura. Uma lógica quase moral da pintura: ordem, hierarquia, contenção. Mas neste caso isso não fazia sentido. A imagem não queria nascer assim. Começou a crescer a partir do centro, do seu foco, e tudo o resto foi aparecendo por relação. 

Mais tarde descobri que este gesto tem nome: expansão radial. Na altura não sabia. Só sabia que funcionava. E que contrariava uma ideia muito enraizada de como “se deve” pintar

Tanta foi a expansão que, foi quase demais. Ao desenhar a ilustração no papel final, eliminei um dos elementos: o vaso. Estava a interferir com a leitura da imagem e a tornar o espaço demasiado saturado de formas. Podia ter sido uma escolha válida — às vezes o excesso é a mensagem — mas não era o caso. O que estava a tentar representar, era um momento de abstração, daqueles em que estamos perdidos nos nossos pensamentos, porque estamos nalgum sítio onde não queremos realmente estar, e as ideias vêm à mente. O meu processo costuma funcionar assim: empolgo-me na fase das ideias, mas depois de deixar os meus olhos descansar da imagem, e de voltar a ela, acabo por retirar os elementos que não fazem sentido à mensagem que a ilustração quer passar.

Foi aí que percebi uma diferença importante: expandir não é acumular. Expandir é dar espaço às relações entre as coisas, permitir silêncio e vazio. Nem sempre é confortável, porque implica abdicar de ideias boas. Mas quase sempre melhora a imagem.


Embora tenha feito um estudo de composição, e um de cores, antes de começar a pintar, há sempre decisões instintivas que só acontecem na hora. 


Neste caso, o estudo de cor que tinha feito, não me satisfazia tanto como a seleção de cores que usei no primeiro retrato feito no sketchbook, e decidi trocar as cores de lugar. 

Usei os valores mais escuros para as janelas no fundo; e, no retrato original, a camisa da personagem também era bastante escura. Quase que a anulava, face à imagem circundante (e só a escrever isto já me pergunto se não vou fazer outra troca!). 

Assim que terminei de os pintar, senti uma sensação de alívio por perceber que a imagem estava super legível e equilibrada; nos espaços restantes poderia quase usar qualquer cor que quisesse, que ia ficar sempre bem. Isso deixou-me muito tranquila em relação ao resto do processo, o que me fez apreciá-lo ainda mais. Ai, que saudades desta satisfação. Desta despreocupação em lutar contra o desenho, versus deixar-me levar por ele.


Só depois reparei num detalhe que me passou despercebido durante o processo. A posição da personagem é a mesma em que costumo estar quando pinto com pincel. Não quando desenho com lápis ou marcadores, em que o “mark making” tem que ser muito mais intencional. Só com o pincel, e o flow da água e tinta na superfície sedenta do papel. Acho que foi a primeira vez que me apercebi tão cedo no processo, da forma como a arte que fazemos, espelha o nosso mundo interior.


A partir daqui, posso pensar a construção do resto da imagem de várias maneiras. Posso expandi-la mais. Posso reduzir. Posso trocar novamente cores. Ou posso parar. Nem todas as imagens precisam de chegar ao máximo da sua possibilidade: algumas só precisam de chegar ao sítio certo!

A pergunta mantém-se em aberto, e é isso que me interessa nela:

Uma imagem pode crescer?

Pode. 

Ainda estou a aprender até aonde!

Abraço,

Margarette