Inspiração artística em lugares improváveis: um ensaio sobre criatividade cringe

(ou: como a embalagem do meu penso higiénico me obrigou a fazer uma página de sketchbook)

Há dias em que a inspiração vem de uma espécie de lugar digno, cheio de luz cinematográfica, quase poético.

E há outros em que...não.

Outros dias trazem-nos uma embalagem de penso higiénico tão graficamente inesperada que ficamos ali, paradas, a olhar para aquilo com a mesma intensidade com que se olha para um quadro do Museu de Arte Moderna.

E é precisamente nesses momentos esquisitos que a criatividade dá um salto de alegria.

Durante muito tempo, evitei admitir que me posso inspirar em coisas assim. É estranho, não é? Uma pessoa passa anos a cultivar referências elegantes — livros de arte, museus, designers incríveis, artistas que seguimos religiosamente — e depois pumba. A musa aparece num pacote de higiene menstrual que comprei no supermercado ao lado dos iogurtes em promoção.

E sabes que mais?

Estou a aprender a assumir isto como parte da minha identidade artística.

Não porque é bonito — mas porque é verdadeiro.

A dita embalagem

O cringe que nos revela

A embalagem era ridiculamente bonita.

Botânicos estilizados, uma paleta discreta mas desafiante, grafismos com ritmo. Parecia um padrão pensado por uma designer que fez doutoramento em “formas que piscam o olho a ilustradores neurodivergentes”. Resumindo: um packaging extremamente bem pensado, porque tudo que puder tornar esta altura do mês um bocadinho mais suportável, é aceite de muito bom grado.

E eu ali, na casa de banho, a olhar para aquilo e a pensar:

“Bolaaas… apetece-me tanto desenhar-te.”

E pronto.

Foi assim que começou — um momento ligeiramente constrangedor, mas totalmente autêntico.

Há uma liberdade muito grande em dizer: sim, isto é esquisito; e sim, isto inspirou-me.

Quando deixamos cair a máscara do artista que só se inspira em referências aprovadas pelo clube elitista da criatividade, começamos finalmente a olhar o mundo como ele é.

E o mundo real é um buffet visual onde tudo — TUDO — é matéria-prima.

Mesmo aquilo que quase preferíamos esconder dentro da carteira quando passamos na caixa do supermercado.

A mecânica do olhar: o que realmente acontece

Inspirarmo-nos em objetos cringe obriga-nos a fazer o que muitos cursos de arte tentam ensinar: olhar sem preconceito.

É quando desligamos o filtro social (e o do Instagram) que o nosso cérebro consegue captar ritmo, padrão, textura, contraste, composição — todas essas coisas que alimentam um trabalho visual sólido.

A embalagem do penso higiénico tinha tudo isso.

E tinha ainda o bónus de me obrigar a enfrentar um desconforto:

“Vou mesmo assumir isto? Vou mesmo transformá-la numa página de sketchbook?”

Sim, claro que sim.

Porque a arte que fazemos quando estamos a marimbar-nos para a opinião alheia é sempre melhor. Sempre.

Materiais, expectativas e reviravoltas

Peguei nos meus lápis pastel seco da Sennelier — aqueles que comprei cheia de expectativas, convencida de que eram um híbrido mágico entre neocolor e pastel de óleo. Quase uma criatura mitológica dos materiais de arte.

Só que…não!

São “só” pastéis secos em formato de lápis. Mas honestamente? São ótimos na sua simplicidade, sobretudo no meu sketchbook da Nina Cosford, que tem uma superfície lisinha que se apaga lindamente.

E foi ali, com essa falsa sensação de segurança, que comecei a construir a composição: observar, esboçar, apagar, melhorar, exagerar um bocadinho.

Como sempre, achei que ia fazer algo pequeno. O habitual. Uma paginazinha simpática.

E… claro que não.

A fome gráfica atacou e ocupei a dupla página inteira. Sem pedir licença.

Se isto não é uma metáfora para a vida inteira, não sei o que será!

O fundo que tomou conta do trabalho


A seguir veio a fase “vou só pôr aqui um fundo rápido”. A fase que nunca é rápida.


Escolhi quatro tons de Neocolor II: cinza frio, cinza quente, turquesa e azul céu.

Apliquei o traço de forma gestual, como se estivesse a dançar com a página — uma coreografia meio improvisada, meio consciente, sempre a pensar na direcionalidade.


E aconteceu aquele fenómeno clássico: Gostei demasiado do fundo. Mesmo demasiado.

O que significa:

“Ah porra, e agora, se eu estraga isto?.”

É sempre assim. O medo de estragar é um indicador perfeito de que estamos muito envolvidos. Mas também é o medo que nos paralisa!


Por isso, tomei a decisão mais simples e mais inteligente: não mexer mais no fundo. Mantê-lo como base, deixar respirar, usar apenas linhas pastel para o contraponto gráfico.

RIP Neocolor cinza frio

A composição como conversa


Quando deixei o fundo quieto, as formas começaram a ganhar vida. Linhas com pesos diferentes, curvas pequenas, marcas soltas — tudo muito gráfico, muito Margarette.

E então, como sempre acontece quando entro nessa zona meio meditativa, uma micro-história começou a emergir.

Não uma narrativa complexa. Só aquele instinto de “o que é que isto está a pedir?”. E lá surgiu uma joaninha muito vermelha, pousada em cima de uma das folhas. Como sou fã de validação externa, chamei o nosso crítico de arte residente: Rodinhas, o gato.

Ele aproximou-se com a gravidade de um curador exigente.

Cheirou, analisou, encarou.

Ofereceu-me o seu olhar de aprovação acompanhado de um ronronar muito suave.

E pronto.

A obra estava oficialmente validada.

Porque é que isto importa (mesmo que seja cringe)

A grande questão é esta:

se eu me inspiro em coisas elevadas e bonitas, ninguém pisca um olho.

Mas quando me inspiro em objetos do quotidiano — especialmente dos tabu-izados — algo muda.

As pessoas franzem a testa.

E eu gosto disso.

Porque o desconforto do outro é a prova de que estou a fazer algo honesto, espontâneo e sem pretensões.

E essa é a base sólida de qualquer prática artística feita para durar.

A arte não vive numa redoma polida.

Vive nas coisas que escolhemos observar — mesmo quando são estranhas, quotidianas, ou pouco instagramáveis.

A minha lição do diA

O que esta página me ensinou, no fundo, foi simples:


— que a criatividade não exige glamour;

— que a inspiração aparece muito mais quando estou presente do que quando estou “à procura”;

— que as páginas de que mais gosto são quase sempre as que começaram por acidente;

— e que, sim, continuar a preencher espaço sem pedir licença é uma das minhas assinaturas preferidas.

Se a beleza pode aparecer embrulhada num pacote de celofane preocupado com absorção…

então o mundo está cheio de oportunidades visuais que só ainda não vimos porque estamos demasiado ocupados a tentar parecer sérios.

E eu, sinceramente?

Quero continuar a ser uma artista séria sem ficar cinzenta.

E se isso incluir museus, sim senhora.

Mas se também incluir pensos higiénicos…

venham eles.

Abraço mágico,

Margarette