Teatro de Fantoches: um teste de cor que acabou numa autópsia estética
Ou: as conversas que tenho comigo própria e que nunca vão parar ao instagram
https://pin.it/1Qti7btJ7
Há dias em que acordo com vontade de mexer em tinta. Noutros, acordo com vontade de organizar tudo o que mexe em tinta. Este começou pela segunda opção. Enquanto completava a minha paleta de guache, aquelas misturas inventadas porque os tubos nunca colaboram, voltei a uma imagem do Pinterest que tinha guardado: um teatro portátil de fantoches, cheio de pequenos detalhes, objetos e texturas que parecem falar entre si. A imagem puxou-me imediatamente para dentro dela: mãos suspensas, personagens que quase respiram, camadas a construir um mundo dentro do mundo. É o meu tipo preferido de busy, aquele caos bonito onde, ironicamente, encontro calma.
A paleta escolhido por mim
Decidi extrair as cores dessa imagem usando o Coolors. Fascina-me sempre a diferença entre as paletas que eu escolheria e as que a ferramenta gera automaticamente.
Paleta gerada automaticamente pelo programa
Ambas estão “certas”, ambas são representativas do mesmo universo visual, mas com leituras diferentes, quase como duas pessoas a olhar para a mesma cena e a notar coisas completamente distintas. É um exercício simples, mas que me dá sempre novas formas de pensar a cor.
O esboço
O curioso é que, ultimamente, tenho sido muito mais influenciada pelos gestos dos artistas do que pelas formas. Já não me interessa tanto o aspeto final, mas sim a forma como seguram o pincel, como o braço descansa, como um traço aparece de repente sem pedir permissão a ninguém. O esboço que comecei acabou exatamente nesse lugar: mais movimento do que forma, mais intenção do que controlo.
Para pintar, podia ter usado uma folha nova, mas escolhi uma página já manchada do meu sketchbook, aquele que eu própria encadernei e que conhece todos os meus altos e baixos. Há qualquer coisa de especial em trabalhar sobre uma superfície que já existia antes. Reativei a mancha com água e deixei o guache amolecer até ganhar aquela textura enevoada que eu adoro. Quando o guache se dissolve assim, quase consegue passar por aguarela.
A fase intermédia
A partir daí, movi-me entre as cores da minha paleta personalizada e as da imagem de referência. E depois chegou o meu momento clássico: o impulso de querer cobrir todos os pontinhos brancos. Não é drama, é só o meu cérebro a tentar pôr ordem no caos. Nos últimos tempos, tenho tentado treinar o contrário: deixar a página respirar em vez de a sufocar. Os detalhes vieram no fim, como sempre, e desta vez fiz um esforço consciente para não cair naquele buraco negro de “usar todos os materiais que tenho”. Usei guache e lápis de cor. Nada mais.
O resultado final.
Tecnicamente, gosto do resultado. Gosto das camadas, das texturas e da forma como o gesto se sobrepôs ao contorno. Mas quando olhei para a peça final, não senti nada. E isso deixou-me desconfortável. Há trabalhos que fazem sentido no processo mas não fazem sentido emocional. Este é um deles.
AUTÓPSIA ESTÉTICA
(Sem tretas nem floreados)
1. O problema não é a imagem. Sou eu.
Não me reconheci completamente no desenho. O traço ficou mais solto do que costumo permitir, mais neutro, menos meu. Sempre que me afasto demasiado da minha linguagem visual habitual, aparece uma sensação estranha. Não necessariamente negativa, mas claramente sinal de que o território é novo.
2. Crescer artisticamente é sempre desconfortável.
Tenho experimentado um estilo mais livre, mais gestual, menos obcecado com detalhe. Gosto dessa liberdade, mas também me desorienta. Uma parte minha ainda quer precisão; outra parte quer levantar voo e ver o que acontece. Este desenho acabou precisamente no meio dessas duas forças.
3. Largar o controlo mexe comigo.
Estou a desaprender a mentalidade do “tapar tudo”, aquela lógica de pintar por números, mas ainda não encontrei o equilíbrio entre solto e estruturado. Quando a linguagem visual muda, a ligação emocional nem sempre acompanha no mesmo ritmo.
4. A desconexão é informação.
Não sentir nada ao olhar para o trabalho é, na verdade, um diagnóstico: ainda estou a digerir influências, a recolher vocabulário visual, a construir um terreno novo que ainda não compreendo totalmente. Isto não é falha, é fase de transição.
5. Este post é egoísta.
Ou pelo menos, foi assim que me senti ao carregar no botão “publicar”. Mas como uma perfeccionista em recuperação, tenho que continuar a dizer a mim própria que, está tudo bem. A internet está cheia de finais polidos e impecáveis. Partilhar processo, dúvida e inquietação é, por si só, uma contribuição. Se ajudar alguém, ótimo. Se não ajudar, continua a ser válido. Esta parte do meu processo raramente chega ao mundo exterior, e eu quero normalizar isso.
Talvez esta peça não tenha falhado - talvez ela só tenha chegado, antes de mim. E eu mal posso esperar para chegar também.
Felizes gatafunhos,
Margarida